Anamnese, uma prática esquecida: Revelações do distanciamento humano e aproximação com as máquinas

A palavra Anamnese, etimologicamente, vem do grego (Aná – trazer de novo e Mnesis – memória). A medicina apropriou-se da terminologia, tomou-a como parte da Simiotécnica (1) de investigação das doenças, mas, hodiernamente, vem deixando essa prática para o passado. Todavia, quando se inicia um artigo trazendo essa definição semiológica, conclui-se que, possivelmente, será a natureza de um médico da “velha guarda” e o seu “saudosismo”. Porém, o esquecimento dessa suposta “técnica”, traduzem questões fundamentais das relações humanas, revelando as interações e seus distanciamentos. Contudo, interrelacionando a anamnese como técnica de escuta dos problemas para qualquer área de atuação, essa questão perpassa a técnica médica de investigação, refletindo as relações sociais que estão sendo pautadas na impaciência, baixa tolerância e praticidade, fortalecendo as relações do ser humano com a máquina.

 

Cotidianamente, observam-se queixas por parte dos pacientes a respeito dos poucos diálogos ocorridos nos consultórios. Comentam que as relações vêm se tornando muito práticas, superficiais, fundamentadas em observações “técnicas” amparadas por recursos diagnósticos, os quais nem sempre existem correlações com as queixas e históricos dos pacientes. Muita das vezes, as pessoas ao saírem dos consultórios, perguntam e falam: “será que devo fazer tais exames? o médico mal escutou o meu problema!” Essas questões empurram os serviços médicos a “maquinificação” (2), significando, nesse contexto de interrelações, as transformações dos serviços da medicina em trabalhos que poderão ser executados pelas diversas inteligências artificiais (IAs), máquinas.

 

Os distanciamentos das relações humanas são questões cotidianamente observadas (3,4). As transformações sociais no contexto humano, nas últimas décadas, demonstram a intima conexão do homem com a máquina. De um modo geral, existem relações de segurança e confiabilidade nas tecnologias, questões que vêm sendo tratadas pela psicologia, translocando a transferência de identidade, humano-humano para humano-máquina (5). Desde os primeiros anos de infância, por exemplo, os tablets e aparelhos de celulares são motivos de relações profundas, atenção e divertimento. Pensa-se que o ser humano está se preparando, habituando-se a encontrar respostas e soluções rápidas, práticas, para diversas questões, inclusive, as angústias. As máquinas respondem tudo, proporcionam divertimentos, e ainda ocupam os centros das atenções. Embalados pelas transformações culturais e tecnológicas, aparecem as novas questões éticas médicas, as quais modulam os comportamentos médico / paciente, entorno das moralidades dos distanciamentos, nas buscas por soluções rápidas e práticas, pois: “o tempo é dinheiro, por que devo escutar? as evidências tecnológicas estarão aí para esclarecer tudo”. Não existe mais paciência para escutar o problema do outro, não há mais interesse na observação semiológica, empatia não será necessária. “Os sensórios não precisam ser mais treinados, os exames suplementares trarão todas as informações necessárias, são apenas questões relacionadas com defeitos de peças (órgãos), as quais precisam ser reparadas (coisificação)”.

 

Hodiernamente, observando as simiotécnicas aplicadas, com os recursos diagnósticos disponíveis, não existirão mais espaços para o ouvido humano e o desenvolvimento da empatia, “o tempo perdido para análise do objeto será muito grande”. Portanto, o escalonamento da produção e o direcionamento do foco “documental” terão que partir para a óptica objetivada, prática, “maquinificadas”, porém, pergunta-se: fundamentados em quais bases técnicas de conduta e hipóteses estarão os argumentos que não foram escutados, os quais revelarão os nexos, conexões, dos problemas a serem resolvidos?

 

Essas transformações sociais, sociologia do trabalho, foram observadas na revolução industrial (6). Naquela época muitos dos trabalhos que eram realizados por seres humanos, foram transformados em trabalhos “maquinificados”, ou seja, foram substituídos as forças de trabalho humana por máquinas. Hodiernamente, esse processo de mudança cultural está ocorrendo de forma evidente, em uma visão anacrônica que muito se assemelha. Portanto, áreas que “necessitavam” da sensibilidade e observação humana estão, cada vez mais, sendo substituídas pelo poder das máquinas, das IAs. Destaca-se aqui, a falta dessa percepção e a facilitação para que isso ocorra. Não é um debate contra a tecnologia, contra os avanços tecnológicos que proporcionam segurança e tratamentos mais eficazes, mas sim, sobre o controle do uso das ferramentas tecnológicas e o fortalecimento da sensibilidade e observação humana. O que nos diferencia, ainda, da máquina é a nossa sensibilidade, a nossa percepção. A capacidade de armazenamento de informações e a suas conectividades, as máquinas têm demonstrado grandes avanços (BIG DATA), assim como, vêm ocupando diversos postos de trabalho, alhures.

 

Conclui-se que, a prática médica ganha destaque pela sensibilidade humana, na atenção; na observação visual (claudicação, lesões corporais…); na escuta das histórias e ausculta (as bulhas cardíacas, creptos pulmonares, trânsito intestinal…); no toque, do simples aperto de mão a palpação (abdome, partes do corpo…); no olfato (nefropatias, gangrenas…); numa mistura de sentidos e intuições que transformam a medicina em arte, Arte Médica de diagnosticar e curar os diversos problemas. As transformações culturais evidenciadas nesse texto, aproxima o médico da máquina e distancia-o do ser humano, modificando as relações humanas em direção a uma ordem prática, amorfa (7), composta por muitos erros. Portanto, será mais fácil substituir o profissional por IAs, que, dentro de uma óptica fria, desconexa da sensibilidade, poderá considerar as queixas dos pacientes, pois, as informações adentradas, todas serão processadas e juntadas a uma grande cadeia de dados, as quais possibilitarão menos erros de conduta e diagnósticos.

 

 

 

 

por Ângelo Augusto Araújo, MD, MBA, PhD (angeloaugusto@me.com)/jornalgrandebahia

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